Trago o refrão de uma canção dos Mumford & Sons para aqui, porque é um exemplo perfeito de como nós, ocidentais, tendemos a separar mente e coração, como se fosse possível dividir cirurgicamente as duas dimensões. Mas será que é mesmo? E o que é que isso tem a ver com terapia?
And my head told my heart
“Let love grow”
But my heart told my head
“This time no”
“Winter Winds”, Mumford & Sons
Vivemos na ilusão, assente na necessidade de tudo compreender e controlar, de que os planos racional e emocional estão separados, cada qual com a sua jurisdição, o seu reino, a sua área de influência. Tendemos a colocá-los em lados opostos da barricada, dando primazia à faceta mental em detrimento da outra, da sentimental. Mas sabe-se que isto, esta separação, não é real. Por exemplo, há décadas que existe evidência científica de que o coração possui um sistema nervoso próprio, bem como um impulso elétrico 60 vezes maior do que o do cérebro, mesmo possuindo uma quantidade bem menor de neurónios.
Por saberem que mente e coração são duas esferas que se completam e não se anulam mutuamente, os japoneses possuem uma palavra que engloba os dois mundos: “kokoro” (心). Traduzida frequentemente como “mente” ou “coração”, não é raro encontrarmos livros sobre cultura japonesa em que a palavra “kokoro” aparece traduzida também como “alma”, “espírito” ou “sentimento”.
“Kokoro” é um conceito que abrange o que alguém pensa, sente e expressa ou gostaria de expressar (seja pela palavra ou pela arte, por exemplo). É composto por todos os pensamentos e sentimentos, bem como pela vontade de uma pessoa, do seu conhecimento e da experiência que adquiriu ao longo do tempo. É uma amálgama de tudo o que pensa e sente, uma espécie de fusão, por se saber que não é possível separar o que resulta da atividade da mente e do coração.
De salientar que kokoro é mais do que a simples soma dos elementos que compõem o conceito. É, sim, todos aqueles elementos ao mesmo tempo. Acredita-se ainda que as características de cada pessoa conferem ao seu kokoro uma “cor” e “forma” próprias e intransmissíveis, tornando cada ser humano um indivíduo único e dotado de uma riqueza interior ímpar. “Kokoro” é, pois, a essência de cada um.
Na cultura chinesa, a palavra “xin” (心) tem um significado idêntico a “kokoro”, sendo traduzida como “coração”, “mente”, “sentimento”, “intenção” ou “centro”. Na verdade, é usada para significar o centro de todas as emoções, incorporando a bondade inerente à natureza e sabedoria humanas. Ou seja, para os chineses, é o “xin” que os ajuda a orientar as suas vidas, atitudes e comportamentos, conduzindo-os à elevação e plena satisfação.
O que é que isto tem a ver com a terapia transpessoal?
Tudo. Tendo em conta que a terapia transpessoal procura responder a necessidades do foro mental/psicológico, mas também emocional, físico e social, prestando uma atenção especial à dimensão espiritual da pessoa que procura acompanhamento, “kokoro” tem tudo a ver com esta abordagem terapêutica.
Se o objetivo de quem busca acompanhamento terapêutico é, na maior parte dos casos, conseguir o alívio de algum tipo de sofrimento, ou levar a cabo um processo de crescimento e mudança, com base num maior conhecimento de si, então, torna-se imprescindível que esse caminho seja feito com “kokoro”, isto é, com total e profundo respeito pelo seu eixo mente-coração.
Para chegar ao outro, há, pois, que acompanhá-lo na tecedura da manta de retalhos que o faz ser quem é, do seu “kokoro” (ideias, pensamentos, sentimentos, emoções, conceitos, traumas, feridas, sombras, expectativas, ambições, desilusões, crenças, etc.) – ou seja, da sua essência.
Mas há também, por parte do terapeuta, que colocar no acompanhamento o seu coração e a sua mente, unidos num trabalho de empatia, compaixão, ausência de julgamento e profundo respeito. Só assim, numa dança de “kokoro” com “kokoro”, será possível trilhar um caminho de profunda descoberta e reconexão com a verdade, com a verdade que cada um traz em si. E isto é a terapia transpessoal.
FONTES:
Fedele, Laura e Brand, Thomas (2020), “The Intrinsic Cardiac Nervous System and Its Role in Cardiac Pacemaking and Conduction”, J Cardiovasc Dev Dis., 7(4): 54.
Gunji, Kimiko (s.d.), “What is Kokoro?”, Japan House, disponível em: https://japanhouse.illinois.edu/education/insights/kokoro, acedido em: 03/04/2024.
Herring, Neil e Paterson, David J. (2021), “The Heart’s Little Brain – Shedding New Light and CLARITY on the “Black Box”, Circulation Research, 128:1297–1299.
Li, Jing, Ericsson, Christer e Quennerstedt, Mikael (2013), “The meaning of the Chinese cultural keyword xin”, Academic Journals, 4(5), pp. 75-89.
Okumura, Shohaku (s.d.), “What is kokoro?”, Lion’s Roar, disponível em: https://www.lionsroar.com/dharma-dictionary-kokoro/, acedido em: 03/04/2024.