Nota prévia: Clarice Lispector é, para mim, um dos nomes mais importantes da chamada escrita do fluxo de consciência. Lembro-me que quando a li, pela primeira vez, fiquei embargada, emocionada e quase chocada por aquilo ser possível. Era possível, afinal, escrever e publicar o que nos vai na alma. E Clarice escreve o que vai na alma de muitas e muitos de nós. Publiquei este artigo, em 2017, na revista online Caliban, e hoje trago-o para aqui porque entendo que faz sentido convocar Clarice Lispector, tendo em conta as ferramentas de que me socorro para acompanhar quem me procura, nomeadamente, a escrita terapêutica.
Há sempre um mistério em que somos apanhados quando lemos Clarice Lispector. Reparem que não escrevo “quando lemos um livro de Clarice Lispector”. Escrevo, sim, “quando lemos Clarice Lispector”. Porque a lemos — e a vemos e sabemos — em cada palavra sua. Entrar no conto O Ovo e a Galinha pode ser arriscado. Sobretudo porque vamos entrar numa das mais desafiadoras mentes-almas da literatura.
“Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo.”
Clarice Lispector, in O Ovo e a Galinha
O que é uma mente-alma? É alguém que consegue fundir estas duas componentes do Ser como se uma fosse a outra, e vice-versa. Simbiose perfeita da consciência e da razão com o interior e aquele mundo que queremos tão escondido em nós dos outros. Mas que Clarice nos revela de rajada, sem pré-aviso. Porque ela se nos revela toda em tudo o que escreve (=é).
Mas, voltando ao conto. O Ovo e a Galinha é considerado um dos mais emblemáticos contos de Clarice. Nele surpreendemo-nos com a sua capacidade reflexiva quando se depara, na cozinha, com um singelo ovo. Nele podemos vislumbrar também a vertente mais oculta — ou esotérica — da autora.
Recorrendo ao fluxo de consciência, Clarice Lispector discorre sobre a vida e a morte (e o sentido de uma e de outra). Aborda a existência, o Ser, leva-nos a percebê-la uma iniciada (sem seita, como afirma em Água Viva) e revela-nos Deus. Tudo isto num ovo. Tudo por causa de um só ovo.
Desde o início do conto, Clarice desarma-nos com a evidência de que algumas coisas (da vida, do mundo) são apenas visíveis a algumas pessoas:
“Só vê o ovo quem já o tiver visto. — Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. — Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo.”
E remete-nos para o Ovo enquanto metáfora de Deus, do início de tudo, daquilo que pode Ser, ou o que É em potência:
“Você é perfeito, ovo. Você é branco. — A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.
(…)
“Ele é um dom. — O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu.”
Dedicando-lhe o amor, que apenas pode ser dedicado ao que se Adora mas que não é tangível:
“Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. — Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele.”
Fala-nos da alma (enquanto ovo), da sua completude e de como ela habita o que é terreno (a galinha), ou de como o mensurável acolhe o infinito:
“O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo.”
E tece a mais maravilhosa teoria de conspiração que envolve ovos e galinhas, revelando que, na verdade, a galinha é apenas um disfarce, uma espécie de agente secreto que tem como missão de vida proteger a pureza intemporal do ovo:
“O ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época.»
«Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior.”
Sabe-se que Clarice Lispector terá lido este conto num congresso sobre esoterismo, em Bogotá, Colômbia, assumindo (como sempre assumiu, sem preocupações de ocultação) um forte lado místico. Aqui, encontramos a alusão ao ser-se/estar-se iniciado, na forma de um agente (secreto) que tem como principal missão, afinal, o amor. É assim que Clarice Lispector se apresenta: como alguém a quem é concedido o privilégio de participar um pouco mais. Amando.
“O ovo nos expõe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.”
(…)
“Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma escolhida.”
(…)
“Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E, então, não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais.”
A mulher Clarice, casada e com filhos, dona de conflitos internos e emocionais que expõe sem pudor, aparece aqui também, à semelhança do que acontece noutros contos e livros. Mas, nesta história, estabelece a tal ligação mágica com algo que nos ultrapassa e do qual ela tem plena consciência:
“Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.
E me faz rir no meu mistério. O meu mistério é que eu sou apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito.”
A terminar, assume a existência de um Plano Universal: o destino ultrapassa-a, afinal:
“Pois, com minha atenção errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que se está fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só tenho mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos não adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles.”
(…)
«Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tão cansada.”
Nota: O conto O Ovo e a Galinha está publicado nos livros de Clarice Lispector Felicidade Clandestina e A Legião Estrangeira. Em Portugal, integra a coletânea Todos os Contos, publicada pela Relógio d’Água em 2016.