A depressão é um problema de saúde cada vez mais comum. Neste texto, reflito sobre o porquê de uma abordagem transpessoal da depressão.

Este é um excerto do meu trabalho final do primeiro ano do curso de Terapia Transpessoal (Escola de Desenvolvimento Transpessoal, fevereiro de 2023). Escolhi como tema de investigação a depressão e de como a abordagem transpessoal pode ser uma mais-valia para quem sofre deste problema de saúde, nomeadamente quando integrada numa estratégia multidisciplinar/holística de cuidados de saúde.

Depressão: uma doença ubíqua

A depressão é uma doença tão comum que o mais provável é que cada um de nós conheça alguém que dela sofra ou já tenha sofrido nalgum momento da sua vida. A prevalência é tão grande que é mesmo possível que nós próprios já tenhamos sentido na pele, ou sintamos atualmente, os seus efeitos. Afinal, como Andrew Solomon afirma nas páginas iniciais do seu colossal livro dedicado a este tema, “a depressão, sob diferentes designações e aparências, é, e sempre foi, ubíqua.” (Solomon, 2016: 14). Pormenoriza ele que, apesar das diferentes designações e formas que a depressão pode assumir, bem como dos diferentes tratamentos que ao longo da história têm sido prescritos para a tratar, a verdade é que alguns dos sintomas habitualmente atribuídos à depressão, como evitamento de interações sociais, angústia e tristeza prolongadas, desespero ou pulsões suicidas, “são tão antigos como as tribos dos montes, se não tão antigos como os montes.” (Solomon, 2016: 338)

A omnipresença da depressão tem sido uma realidade ao longo da minha vida. Não como doente, mas como familiar, acompanhante, cuidadora, companheira, amiga e até terapeuta, mas sobre isso falarei mais à frente. Essa é, portanto, a principal justificação para a escolha deste tema de investigação: a minha experiência com a depressão. A que acresce a elevada prevalência da mesma (como justifico já de seguida, recorrendo a dados epidemiológicos recentes) e o facto de a considerar um tema de abordagem transpessoal por excelência.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão afeta cerca de 280 milhões de pessoas em todo o mundo, incluindo cerca de 5% de todos os adultos, sendo que as mulheres são mais atingidas que os homens (OMS, 2021a). Na Europa, a situação acompanha a tendência mundial, com dados do Eurostat (2021) a revelar que, em 2019, 7,2% dos cidadãos da União Europeia (UE) revelavam sofrer de depressão crónica. Entre os países da UE, Portugal destaca-se por ser aquele que apresenta maior percentagem de população com depressão crónica (12,2%) e ainda por ser aquele onde mais mulheres padecem deste problema de saúde (16,4%).

Os jovens estão igualmente expostos à depressão e a situação é muito preocupante. De acordo com a OMS, a nível mundial, um em cada sete jovens entre os 10 e os 19 anos de idade vive com um problema de saúde mental, com destaque para a depressão, ansiedade e perturbações do comportamento (OMS, 2021b). No nosso país, dados recentes (ainda não publicados oficialmente, mas divulgados pela investigadora principal em Portugal) do Health Behaviour in Shool-aged Children, um relatório da OMS sobre adolescência, revelam-nos que, entre 2018 e 2022, a perceção de infelicidade dos adolescentes portugueses subiu de 18,3% para 27,7%. Ficamos ainda a saber que o número de jovens que se autolesionou, durante os últimos 12 meses antes do inquérito, aumentou de 19,6% (2018) para 24,6% (2022), além de que a percentagem de adolescentes que refere sentir-se, quase todos os dias, tão triste que não aguenta subiu de 5,9% (2018) para 8,7% (2022) (Público, 2022a).

A chamar também a atenção para o problema entre os mais novos, um estudo recente, coordenado pela Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, revelou que os sintomas de depressão nos adolescentes portugueses voltaram a aumentar, afetando 42% dos inquiridos a nível nacional, com o género feminino a denotar piores indicadores de saúde mental (Público, 2022b). Esta conclusão vai precisamente ao encontro do enorme grito de alerta deixado por Donna Jackson Nakazawa, que recentemente escreveu um tratado sobre como “as nossas raparigas simplesmente não estão bem” em termos de saúde mental (Nakazawa, 2022: 20), salientando que a “depressão ocorre mais frequentemente em raparigas hoje que no passado, e aparece mais cedo do que há duas décadas – com frequência pelos 12 ou 13 anos de idade” (Nakazawa, 2022: 20).

E se tudo isto não fosse matéria mais do que suficiente para nos levar a todos globalmente, como sociedade, a pensar mais e melhor sobre esta relevante questão de saúde, temos ainda a constatação de que, em 2020, os números da depressão no mundo aumentaram significativamente como consequência da pandemia de Covid-19. Com efeito, de 193 milhões de pessoas diagnosticadas com depressão major antes da pandemia, passou-se para 246 milhões após o coronavírus (Covid-19 Mental Disorders Collaborators, 2021). Mas parece ter sido entre os mais novos que a pandemia mais marcas deixou, já que, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, cerca de 50% dos jovens europeus relataram necessidades de cuidados de saúde mental não satisfeitas na primavera de 2021 e novamente na primavera de 2022. Além disso, os sintomas de depressão entre os jovens mais do que duplicaram em diversos países europeus (OCDE, 2022).

De acordo com um artigo científico publicado em 2022 pela Associação Mundial de Psiquiatria em conjunto com a The Lancet, há evidência acumulada ao longo de décadas de que a depressão é uma das principais causas de sofrimento evitável no mundo. Ainda assim, concluem os autores, não tem sido feito o suficiente para evitar e aliviar o sofrimento e as desvantagens associadas à depressão, e poucos governos reconhecem a depressão como um travão ao desenvolvimento social e económico (Herrman et al., 2022).

Porquê uma abordagem transpessoal da depressão?

A saúde mental é parte integrante da nossa saúde e bem-estar e reconhecida como um direito humano básico. Dispor de boa saúde mental ajuda-nos a melhor estabelecer ligação com os outros, a funcionar em sociedade, a lidar com os acontecimentos da vida e a prosperar. Porém, ao longo da vida, os nossos níveis de saúde mental oscilam, à semelhança do que se passa com a saúde física, podendo ir desde excelentes estados de bem-estar até estados muito debilitantes de grande sofrimento e dor emocional. Como vimos, a depressão é um problema muito frequente de saúde mental, podendo surgir ao longo do continuum que é a nossa vida, já que as suas causas são complexas e multifatoriais, resultando de uma intricada interação de fatores sociais, psicológicos e biológicos (OMS, 2021a; OMS 2022), nem sempre identificados ou reconhecidos em todos os doentes.

Sabe-se que as pessoas que passam por eventos adversos, como lutos e perdas, desemprego e eventos traumáticos, são mais propensas a desenvolver depressão, havendo também quem experiencie esta doença no pós-parto, na sequência da saída dos filhos de casa, por altura de se retirar da vida ativa ou porque depende de substâncias aditivas, como drogas ou álcool, entre outras causas. Mas há também quem atravesse uma depressão sem que nenhum destes fatores seja observável e em idades muito díspares. Por tudo isto, uma abordagem transpessoal é adequada, já que uma visão transversal, capaz de abranger não só o corpo físico, mas atender igualmente às dimensões mental, psicológica, emocional e espiritual, é a única capaz de efetivamente ajudar a pessoa com depressão a atravessar as trevas com que esta doença lhe tinge a vida.

Os pilares da Terapia Transpessoal – permanecer com o que há, caminhar para uma visão integral da pessoa num ritmo próprio e adequado, a viagem profunda ao interior do outro e a aceitação de sentimentos, emoções e sombras – assentes na atitude de escuta ativa e compassiva do terapeuta, fazem da abordagem transpessoal um caminho válido (acredito mesmo que determinante em inúmeros casos) para complementar os necessários cuidados de saúde a prestar a quem sofre de depressão.

Como realça o psicólogo Jaime Llinares Llabrés (2003), cofundador e antigo presidente da Associação Espanhola de Psicologia Transpessoal e cofundador da Associação Europeia de Psicologia Transpessoal, tentar compreender a depressão numa perspetiva transpessoal, implica olhar para a realidade tridimensional do ser humano (pessoal, interpessoal e transpessoal) e assumir que é aqui que se manifesta a queda e/ou descida de energia vital que caracteriza a depressão. Logo, é para esta tripla dimensão que devemos olhar.

Uma abordagem transpessoal da depressão impõe-se, sobretudo se a considerarmos – como faz o psicoterapeuta norteamericano Thomas Moore – ligada à alma. Encara-a assim, quer se manifeste com todos os sintomas clínicos que habitualmente lhe são reconhecidos e exija tratamento médico, ou apenas se revele como uma vivência dolorosa da vida quotidiana. Em ambos os casos, escreve ele, “é uma afeção humana vivenciada pelos humanos e, assim sendo, devemos considerá-la como um aspecto da alma” (Moore, 1999: 263).

Saliento que a minha proposta passa por potenciar o recurso ao transpessoal como oportunidade para ajudar o doente a atravessar o lugar negro e fundo de depressão onde se encontra, apoiando-o nesse caminho e ajudando-o a encontrar em si ferramentas e recursos que o alavancam na travessia e, até, a retirar da descida as aprendizagens necessárias. Deixo clara a necessidade de estabelecer uma fronteira entre a terapia transpessoal e o acompanhamento por outros profissionais de saúde, nomeadamente, especialistas em Psiquiatria. Acima de tudo, a minha principal intenção é sublinhar a importância da complementaridade de cuidados, destacando como a terapia transpessoal pode ser um importante apoio numa estratégica holística de cuidados.

Andreia Vieira, “Escutar a depressão: um convite transpessoal”

(Excerto do trabalho final apresentado para a conclusão do nível I do curso de Terapia Transpessoal, Escola de Desenvolvimento Transpessoal, 2022/2023)

REFERÊNCIAS

COVID-19 Mental Disorders Collaborators (2021), “Global prevalence and burden of depressive and anxiety disorders in 204 countries and territories in 2020 due to the COVID-19 pandemic”, The Lancet, 398(10312):1700-1712, doi: 10.1016/S0140-6736(21)02143-7. Epub 2021 Oct 8.

Eurostat (2021), Persons reporting a chronic disease, by disease, sex, age and educational attainment level, disponível em: https://ec.europa.eu/eurostat/databrowser/view/HLTH_EHIS_CD1E/bookmark/table?lang=en&bookmarkId=2d249b06-f173-48b3-b6ed-e90b57e6f683&page=time:2019, acedido em: 10/01/2023.

Herrman, Helen et al. (2022), “Time for united action on depression: a Lancet–World Psychiatric Association Commission”, The Lancet Commissions, 399(10328):957-1022.

Llabrés, Jaime Llinares (2003), “Clinical Depression: A Transpersonal Point of View”, International Journal of Transpersonal Studies, 22(1), 86-88.

Moore, Thomas (1999), Como Educar a Alma, 3.ª Edição, Lisboa, Planeta Editora.

Nakazawa, Donna Jackson (2022), Girls on the Brink, Nova Iorque, Harmony Books.

OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (2022), Health at a Glance: Europe 2022 – State of Health in the EU Cycle, disponível em: https://www.oecd-ilibrary.org/social-issues-migration-health/health-at-a-glance-europe-2022_507433b0-en

OMS – Organização Mundial da Saúde (2021a), Depression, disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/depression, acedido em: 10/01/2023.

OMS – Organização Mundial da Saúde (2021b), Adolescent Mental Health, disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/adolescent-mental-health, acedido em: 10/01/2023.

OMS – Organização Mundial da Saúde (2022), World Mental Health Report: Transforming Mental Health for All, Genebra, Organização Mundial da Saúde.

Público (2022a), “Mais infelizes, mais nervosos. O que se passa com os adolescentes?”, data de edição: 14/12/2022, disponível em: https://www.publico.pt/2022/12/14/infografia/infelizes-nervosos-passa-adolescentes-722, acedido em: 10/01/2023.

Público (2022b), “Depressão aumentou nos adolescentes e afecta 42% dos jovens”, data de edição: 29/09/2022, disponível em: https://www.publico.pt/2022/09/29/p3/noticia/estudo-revela-depressao-aumentou-adolescentes-afecta-42-jovens-2022320, acedido em 10/01/2023.

Solomon, Andrew (2016), O Demónio da Depressão – Um Atlas da Doença, Lisboa, Quetzal.