E se só conhecêssemos meia dúzia de palavras para nos referirmos ao nosso estado emocional, será que conseguíamos expressá-lo corretamente ao outro?
Medo. Tristeza. Alegria. Raiva. Surpresa. Nojo. Imaginemos que só dispúnhamos destas seis palavras para expressarmos as nossas emoções. Seria suficiente? Estas são consideradas as emoções básicas ou primárias, de acordo com a amplamente aceite e difundida Teoria das Emoções, criada pelo psicólogo norte-americano Paul Ekman. Mas a verdade é que muitas outras emoções podem ser, e são, identificadas, com o psicólogo Robert Plutchik, no outro extremo, a considerar que é possível sentir 34 mil emoções diferentes. Entre um e outro, deparamo-nos com um fosso de 33 994 emoções. Será que o conseguimos atravessar – e seguir incólumes – no dia a dia da nossa existência humana?
E se eu fizer um desenho?
Quem estiver a tentar responder à pergunta que formulei no parágrafo de abertura deste artigo, é provável que se encontre, veementemente, a dizer que sim, que é possível expressarmo-nos emocionalmente mesmo que apenas conheçamos seis palavras. Desde logo, porque podemos recorrer à expressão facial, a gestos, movimentos corporais ou, até, fazer um desenho ou reproduzir sons. Sem dúvida que sim. Isso é inquestionável e o valor destas formas de expressar emoções é vastíssimo (algumas, até, com grande poder terapêutico). Mas se nos imaginarmos, por exemplo, a ter uma importante conversa a dois, sobre um tema crucial, será que seria adequado pedir ao outro “olha, espera um bocadinho que vou só ali buscar papel e lápis de cor para fazer aqui um desenho sobre como me sinto face a este tema”? Ou, então, “vou dançar esta emoção, vê se consegues descobrir qual é”. Será que isto é viável?
Talvez por (de)formação profissional, é grande o apreço que tenho pelas palavras e pelo que elas nos permitem. Mesmo sabendo que são um veículo sobretudo racional, que nos leva a circular nas (por vezes, limitadas) vias cognitivas, a verdade é que elas nos permitem traduzir o mundo interno, de forma muito rápida, fácil e (esperamos), clara. Afinal de contas, o que é que a poesia faz se não atingir-nos no âmago das emoções e pôr por palavras o que sentimos e julgávamos indizível?
Atenção que não estou a dizer que as palavras são indispensáveis ao sentir, não são. Como escreve António Damásio, em Sentir & Saber, “podemos, como é óbvio, empregar palavras para descrever a experiência do sentimento, mas não precisamos da mediação das palavras para a sentir”1. Não, claro que não precisamos. Mas, frequentemente, precisamos delas para nos fazermos entender.
Um dicionário para compreender o coração
Gosto muito de palavras, assumo. Deixo já aqui a minha declaração de interesses. E receio que, nos últimos tempos, as ditas andem a ser vilipendiadas, usadas em excesso ou por defeito, raramente na dose certa. Raramente a palavra certa. Vem isto a propósito da obra “Atlas of the Heart”, de Brené Brown (existe a adaptação para série documental, disponível na HBO Max), que aborda a necessidade de dispormos de linguagem adequada (e de confiança sustentada) para verdadeiramente contarmos a nossa história e sabermos acolher as histórias que ouvimos. No fundo, a autora propõe uma nova estrutura, um mapa, para cultivar conexões significativas, sendo que a linguagem desempenha aqui um papel fundamental.
Diz-nos Brené Brown, logo no primeiro episódio da referida adaptação televisiva, que “há uma grande disrupção quando não conseguimos encontrar as palavras certas para descrever o que sentimos, para identificar as nossas emoções”. A este propósito, dá o exemplo de uma investigação que envolveu 7 mil participantes, em que a média das emoções que os participantes diziam reconhecer se situava em apenas três (três, repito).
No mesmo episódio, a psicóloga Susan David fala sobre a importância da “granularidade emocional”: “As palavras importam. Quando usamos rótulos exatos para descrever aquilo que sentimos, conseguimos transformar o que parece uma experiência imensa e dúbia em algo com limites e um nome. Mas é frequente não usarmos a granularidade emocional. Em vez disso, o que fazemos enquanto seres humanos, é desenvolver termos genéricos. Mas, quando fazemos isso, a nossa psicologia não sabe como navegar a realidade daquilo que estamos a viver.” Ou seja, o que esta especialista em agilidade emocional nos diz é que, sem uma linguagem concreta, assertiva e acertada, ficamos sem coordenadas para navegar na emoção que estamos a sentir.
Neurobiologia da linguagem e da emoção
Investigações recentes têm vindo a reforçar, crescentemente, a necessidade de se dispor de um léxico amplo o suficiente para nos ajudar a exteriorizar o nosso mundo emocional interno. E isto porque, ao que parece, a linguagem pode não ter impacto nas emoções apenas após as mesmas serem expressas, mas pode ter um papel integral nas perceções e experiências emocionais, moldando a natureza da emoção que é percebida ou sentida em primeiro lugar. Como Brené Brown deixa claro, “a linguagem não se limita a comunicar aos outros o que sentimos, ela molda o afeto e a emoção que sentimos. Ao darmos o nome incorreto a uma coisa, isso altera a nossa perceção dessa coisa”.
Para dar um exemplo do que está aqui em causa, imaginemos uma pessoa que diz que está triste, quando, na verdade, o que está é a sentir-se injustiçada, ou irada ou manipulada. Estas três hipóteses de emoção são bem diferentes da tristeza reportada. O que a investigação sugere é que, ao catalogarmos erradamente a emoção, estamos a percecioná-la de forma errada também. E, como facilmente percebemos, confundir raiva, injustiça ou manipulação com tristeza, interfere necessariamente com o nosso mundo emocional, impedindo-nos de viver e expressar convenientemente o que sentimos.
Quando contactei com esta perspetiva, foi inevitável reforçar o meu amor pelas palavras e enquadrá-la no poder da escrita terapêutica. E se eu já dedicava tempo (muito tempo, por vezes) até encontrar a palavra certa para encaixar numa determinada frase (lá está, os muitos anos passados a escrever, como profissão, terão contribuído para isso), agora passei a redobrar os cuidados. Não só quando me expresso, mas também, quando escuto o outro.
- Damásio, António (2020), “Sentir & Saber – A Caminho da Consciência”, Temas & Debates.
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